domingo, julho 03, 2005

Pássaro de cativeiro

Sempre houve, basicamente, dois tipos de pássaros no mundo: os livres por natureza e os de cativeiro.

Contrariando o entendimento geral que diz que todos os animais são por natureza livres, alguns desses bichos mostram sim uma intensa vontade de assentamento, que acaba por se materializar no cativeiro. Afinal, a mesma gaiola que limita e prende é a que dá chamego, proteção e a garantia de sobrevivência e de alimento. E tudo em troca de um assobio aqui, uma exibiçãozinha de beleza ali.

Não se trata tampouco de uma questão de nascimento ou costume. Há muitos pássaros que nasceram no cativeiro e, mesmo nunca tendo conhecido outra coisa, são infelizes. Outros que tiveram o sereno e o vento fresco como companheiros de uma vida toda e, tarde, descobrem que queriam é ter ficado presos. Outros que são felizes como sempre foram.

No mundo real, tudo pode ser mais divertido, mais sortido, mais colorido, mas também é mais difícil e mais angustiante. É claro que as cores, as formas e os ares são sempre mais variados e, possivelmente, mais contagiantes. Mas os predadores estão sempre por aí --é a lei da natureza--, e nunca se sabe quando uma armadilha qualquer acaba com a sua vida. E as noites sem alimento, que também matam, são uma possibilidade real. No mundo há tantos ares diferentes quanto donos de gaiola à procura de passarinhos para o embelezamento de suas tardes. Trata-se, portanto, de uma escolha.

E esse passarinho, que nascera livre, tinha decidido desde que se vira consciente: queria a todo custo uma gaiola.

Que não se pense que é simples achar uma, há muitas que se confundem com armadilhas. Outras são tão precárias ou tão frágeis que não vale a pena deixar-se prender. Nessa procura intensa ficou o passarinho, sem dar muita bola para as conquistas da liberdade que tinha, das cores, dos sons, dos ares. Bobagens para os sentidos. O que interessava para ele era ter um lugar para chamar de seu.

Depois de muita procura, eis que ele a achou. Era bonita, bem vistosa, o Trill que o dono colocava para comer era excelente, daqueles que dá vontade de comentar com os amigos. Ah, amigos o passarinho tinha de monte. Se, de início, todos os momentos da vida do animal eram passadas na gaiola, no fim, por causa deles, o passarinho começou a fugir dali às vezes, o que deixou o dono preocupado. Mas não se preocupe, dizia o penoso para ele, pois aqui é meu lugar e para cá sempre voltarei...

Nas revoadas com os amigos, o passarinho começou, enfim, a ter gosto pela liberdade. O sol era bonito; a lua, encantadora. O néctar de diferentes flores, o sabor da carne de pequenos animais, o ar fresco na cara. Mas se mantinha fiel a seu dono e a sua gaiola, ao velho e bom Trill e à cantoria para seu dono --e era para lá que ele voltava todas as noites.

As escapadas noturnas do passarinho para ver os amigos, no entanto, tiraram a tranqüilidade por completo do coração do dono. Ele então começou a tratar o passarinho mal, a criar outros passarinhos de forma mais carinhosa e a descuidar da manutenção de sua gaiola. Depois de muito resistir, sofrendo calado, resolveu fugir de lá em definitivo. O dono, percebendo o erro em que incorrera, chamou-o de volta. Em vão. Pois, afinal, não era pela mudança de comportamento do humano que ele deixou sua vida confortável. Não. Era porque tinha finalmente tomado gosto pela liberdade, e quanto.

Ganhando os ares, foi impulsionado pelos sete ventos, entrou em inúmeros buracos nas árvores, viu o azul do lago, o amarelo do ipê, o verde do campo. Comeu frutas, que eram um verdadeiro banquete, vermes, que não eram de todo maus, e o lixo dos humanos, meio insalubre. Dormia em buracos, sob a copa das árvores ou ao ar livre. Aprendera também a desviar dos gaviões mais óbvios e violentos, bem como de diversos predadores da terra. Não se importava, no entanto. O perigo é o preço da escolha.

No mundo há muitos lugares diferentes, e o engraçado é que os pássaros reagem a esses lugares de maneira diferente também. Nenhuma clareira é igual à outra, nenhum penhasco é visto do mesmo jeito que o precipício anterior. Pode às vezes ser parecido, mas o pensamento do passarinho ao apreciar aquele lugar diferente é sempre diferente, às vezes até ao apreciar o mesmo lugar duas vezes, aquela história do Heráclito.

Mesmo com a multiplicidade de lugares, a liberdade não é soberana, sofre perigos, ameaças. As mais contundentes são as impostas por lugares bonitos demais. Muitas vezes, um passarinho se apaixona seja por sua beleza, por seu aconchego, pela sua tranqüilidade ou até por seu agitamento.

E se passaram inúmeros dias, melhor, vários anos, para que isso acontecesse com o passarinho. Mas, de alguma maneira, ocorreu e a tal liberdade virou novamente vítima. E, mesmo sabendo do perigo que era se ater a um só lugar novamente, resolveu ficar, desta vez menos pelo sentimento geral de segurança e mais pela beleza específica que via no lugar e pela conseqüente paixão irrefreável que via nascer dentro de si.

Mas o lugar pelo qual o passarinho se apaixonou até o fim da vida era realmente muito estranho: um labirinto. E, embora não se cansasse de conhecer o labirinto, a cada dia uma novidade (era quase como a liberdade confinada), isso começou a incomodá-lo. O desconhecimento é uma fonte para muita insegurança, ainda mais quando o destino de sua vida é depositado em um lugar específico. Mas o labirinto era grande demais, ele não apressaria esse conhecimento nem que quisesse.

E, mesmo tomando sustos --às vezes desagradáveis-- atrás das paredes e esquinas do labirinto, o passarinho ali seguiu pelo resto de seus dias. Abraçou a insegurança cativante e fez dela uma companheira inseparável por toda a vida. Perdeu-se inúmeras vezes, afinal, assim são construídos os labirintos. Não que sejam intrinsecamente maus ou bons: simplesmente a magnitude e a complexidade são parte integrante de sua beleza, fazem parte de sua natureza --assim como o passarinho já tinha querido a gaiola e lá sido feliz. Bem, ele passou o resto da vida no labirinto, e acabou por perceber que todo seu quinhão de vida era muito pequeno para conhecer por inteiro aquele lugar.

Assim, seu último pensamento, velho e moribundo, evidenciou uma dúvida: não se lembrava de como tinha entrado ali pela primeira vez, nem muito menos de onde era a saída. Na verdade nunca a havia procurado, portanto não sabia se teria podido encontrá-la. Mesmo que fundamentalmente seu ingresso tenha sido uma escolha consciente, sua eventual saída não; até o fim, ele permaneceu ignorante sobre se tinha vivido até a morte como um livre apreciador do desconhecido aprisionante ou o como prisioneiro desconhecido de uma apreciada liberdade.

Mas não fazia diferença, porque o mais importante ele tinha conseguido. Morreu feliz.

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Conto escrito em 13/04/05

2 comentários:

Anônimo disse...

"Livre como o vento
Que passa perpassa sobre o cume verde dos montes
Livre como a brisa leve e suave que sussurra na superficie das águas e dos mares
Livre cantarei, Hosana nas alturas
Que me dá esta força incomensurável
Para suportar todos os males dessa vida"

Ao pensar em pássaro, páro.
Perplexa, inerte, serena.
Até sinto o vento na cara,
Dinamismo das asas azuis,
E leveza nos galhos que pouso.
Leveza, liberdade, libertina.
Em bando, na gaiola ou labirinto.
Não importa.
Sigo meu sonho.
Minha sina.

Beijos, MAVI!
TE AMO!
VITA! hehe!

Anônimo disse...

há muito tempo não lia algo tão bonito. You've got the touch.