quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Comprando cigarros

Não achei que fosse tão fácil sumir, e não é. Sair de cena como fosse ao cinema ou, clássico é clássico e vice-versa, dar uma volta para espairecer e comprar um Marlboro Light no boteco da esquina.

A vida é tão interligada que está sempre mais difícil desaparecer de vez. Claro que o Brasil de hoje não é tão diferente do de antigamente, ele ainda é meio Central do Brasil. Uma ida do interior de Pernambuco à periferia do Rio de Janeiro, nas infindáveis horas do busão ou da boleia do caminhão, ainda pode desmembrar uma família, mas hoje o sumiço é muito mais difícil. Hoje sempre há um telefone celular que alguém ainda conheça, um amigo-cúmplice que eventualmente dá com a língua nos dentes, uma conta de e-mail perdida que você não teve coragem de apagar, como um cordão umbilical que ainda te une ao mundo a abandonar.

Vejam por exemplo o coitado do Belchior, só queria abandonar honestamente a mulher e os filhos, como tantos que o precederam, mas tinha o Fantástico para achá-lo no interior do Uruguai. Interior do Uruguai! Não basta mais morar na periferia ou numa favela, como o Hulk do Rio. A localização familiar já se expandiu ao Mercosul.

Claro que os anônimos contemporâneos também têm problemas. Hoje não há mais, por exemplo, a ditadura pra sumir com você; só a violência das cidades, a polícia, os bandidos. Mas isso não é sumir com qualidade. O sumiço ideal tem de ficar cristalino como sumiço, não pode parecer crime. Ou você quer sua foto estampada nas contas de luz da CEB, no intervalo do Linha Direta ou de alguma novela da Gloria Perez? Aí te acham. E a família desesperada nos seus calcanhares? Vai te deixar em paz? Muito melhor se, mesmo não tendo a capacidade de argumentar, de implorar a sua não-partida ou mesmo de ofender, a criança ranhenta ou a moça grávida saibam que você é um cafajeste, um pilantra, um covarde que simplesmente resolveu dar um restarte numa vida não-recomeçável. E é melhor pagar as contas antes de sair, para sumir sem o SPC bloquear o seu cartão escondido, para evitar credores em geral, que têm sabujos ainda mais eficientes que os das mães solteiras e encontram qualquer Zé Carioca em uma lata de lixo escondida.

Esse é o mundo de hoje. Mesmo aqui na África Ocidental, do outro lado do Atlântico, numa cidade de 2 milhões de habitantes, tenho todas essas tretas localizadoras: e-mail, orcute, feicebuque, celulares, emprego com página na internet e telefone, conta no banco e carteirinha. Mais localizável que se estivesse pregado num banco de madeira no Rei das Batidas numa quinta à tarde ou sentado no vão do MASP na véspera de Natal às 10h da manhã.

Se um dia precisar sumir, vou ter que ir ainda mais longe, para uma cidade ainda mais populosa ou remota. Apagar todos perfis e cancelar e-mails, pagar contas e, principalmente, começar a fumar. Aí vou poder tranquilamente sair para comprar, como diria o amigo Xico Sá, o king size sem filtro do abandono.

segunda-feira, fevereiro 01, 2010