domingo, março 20, 2005

O meio segundo - 1

Aquele meio segundo. Parecia uma eternidade, às vezes. De resto, tudo ia bem, até demais. Exatamente da maneira em que, em qualquer outra ocasião, ele chamaria de perfeito. O sol quente estava bem pregado no céu azul, a leveza, no ar, e o bom humor, no sorriso; estava perfeito até demais, era de se desconfiar. De repente dera sorte na vida: uma folga inesperada no trabalho, o fim-de-semana por aproveitar e seu amor estendido ali, perfumando seus lençóis.

Foi aí que ele viu algo errado. Ou melhor, ela viu. Não a viu acordar, estava no banheiro se arrumando, mas percebeu sua presença. Olhou-a pelo espelho. E, no auge do seu brilho extático, o meio segundo apareceu. Sim, só meio segundo. Eles se sorriam, olhavam um para o outro no reflexo, noventa perfeitos graus. Mas quando ela desfez o sorriso, assim como a gente faz quando gosta de alguém, devagarinho, um olhar estranho, meio enviesado, caiu como uma bomba em seu coração. Meio segundo. E, subitamente, ele pressentiu algo de errado. Sua felicidade tinha uma nódoa.

Na primeira vez em que a gente vê essas coisas, não quer acreditar. Mesmo quando sua intuição diz que algo está acontecendo e você não sabe o que é. E, se você não sabe, é porque provavelmente não é bom. Por que ela o olhou daquele jeito? Aquele sorriso me dizia alguma coisa, alguma coisa que não era boa... o quê? Será que ela não gosta mais dele? Mas que porra é a intuição masculina? Que pressentimento idiota...

Ela saiu. Ele olhou no espelho para si próprio. Devia ser lá que estava o errado, uma pasta de dente que sobrou no canto da boca, uma remela resistente pregada no canto do olho. Nada. O cabelo, a limpeza das orelhas. O nariz. Os dentes. Os pêlos do peito. Nada, nada, nada, nada. Estavam mais perfeitos do que jamais estiveram.

Olhou para o espelho de novo, para o ambiente. Um pote de creme amarelo de cabelo aberto ressecava no ar quente da manhã. Uma pasta de dente aberta, como sempre deixava, nutria o mármore da pia com o melhor do flúor e da ação branqueadora. Escova de dente desfiando. Os pêlos descendo, a toalha amarrada em sua cintura. A prateleira de desodorantes e colônias, um frasco verde reluzindo.

(Conto em muitas partes; continua em alguns dias...)

Um comentário:

Anônimo disse...

bah, que curiosidade...
continua! continua! continua!
beijosssss