domingo, maio 06, 2007

A vida como ela não deve ser

Homenagem ao gênio rodrigueano instalado em nossa hipocrisia cotidiana.


A ciumenta

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Ao ver com ela uma cena louca de perda e morte no cinema, o rapaz começou a pensar e perguntou, de repente e despretensiosamente:

- E se a gente terminasse? Você ia também querer me matar?
- Sim, por que não? Hehehehe...
- Não, estou falando sério? E se a gente terminasse?
- Por que, você quer terminar comigo?
- Não é isso.
- Então por que essa pergunta cretina? Faz alguma diferença?
- ...

Ele não respondeu, mas a verdade é que fazia. Queria saber, não obstante a amasse loucamente e nunca tivesse pensado em deixá-la, se continuava no domínio do livre arbítrio ou estava preso ao compromisso.

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A perseguição

Até aquele dia, o rapaz tinha vivido na mais absoluta harmonia com Suzete. A jovem era bem-huumorada, não implicava com nada, nem com a sempre suspeita combinação de futebol, cerveja e amigos desacompanhados que Malaquias se reservava às quartas-feiras. Ele, bem apessoado, até se incomodava com a falta de ciúmes da pequena. A seu amigo mais próximo, Genésio, confidenciava: "Acho que ela não gosta de mim, nem se importa quando passo com ela na rua e as outras me comem com os olhos!"

No entanto, naquela noite, no cinema, ele viu nela uma fagulha de senso de pertencimento: era o tal ciúme mesmo, um medo descabido do fim. E aquilo o perturbou. Suzete continuava a se comportar como sempre, permitindo-lhe um desprendimento que beirava o inusual. Não se importava nem com a proximidade constante entre Malaquias e amigas bonitas. Ainda assim, o rapaz começou a achar que a namorada mandava vigiar cada passo seu.

Os dias se passaram e agonia foi crescendo. Qualquer brincadeira da mulher no sentido de mostrar um ciúme lúdico punha-o apavorado.

- Minha pequena me persegue, é o cão!, dizia a Genésio. Olha feio para todas as minhas amigas!

- Que nada, rapaz, ela só pensa em ti! E nem ralha com o teu futebol, nem quando você chega bêbado na casa dela, com cheiro de pinga...

- Pois é! Alguma coisa tem aí, te digo! Aposto que ela manda alguém me seguir!


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Desfecho inesperado


Meses depois, Malaquias já tinha hábitos um tanto heterodoxos. Saía de casa em horários escusos e disfarçado, e percorria trajetos despistantes. Como não descobrisse nada de diferente no temepramento da namorada, arrumou uma amante, só para ver se Suzete o vigiava. Com a nova pequena, uma feiazinha chamada Isabel, tornava-se cada vez mais descarado. Uma vez foi com ela ao cinema da cidadezinha de interior, na frente de todas as fofoqueiras, só para ver o resultado. E Suzete nada dizia, com o que ele asseverava: "Aí tem coisa! Ela me vigia, deve ter vídeos, fotos, eta diabo ciumento!"

Um dia, irritou-se, foi com Isabel à casa de Suzete e perguntou:

- Escute, você andou ouvindo que ando saindo com Isabel?

- Ouvi sim, meu amor, mas é tudo intriga desse povinho maldoso! Te amo mais que tudo, confio em você! Isabel é só uma amiga, não é?

- Mas como é falsa! Disfarça esse teu ciúme agora, disfarça!

E beijou a boca de Isabel na frente da namorada, do sogro, da prima deficiente. Foi escorraçado sob vassouradas da tia fofoqueira. Só então se deu conta da besteira que tinha feito, do relcaionamento perfeito que tinha destruído frivolamente, desde aquela noite no cinema.

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O cinema e o burro

Mudou-se da cidade com Isabel. No dia em que soube, por um primo maldoso, que Suzete havia se casado com seu antigo melhor amigo, Genésio, foi com a ex-amante ao cinema ver um musical.

Ouvia aquelas canções, poemas sonoros, com os olhos marejados e a milhares de quilômetros. A mão que acariciava era outra, mas nem parecia. Ao pensar na pequena que perdeu, uma lágrima rolou em seu rosto. No entanto, de súbito mudou de idéia: pensou em Genésio e ficou com raiva.

- A culpa foi desse cara, agora eu vejo. Era um filho-da-puta mesmo. Estava de olho nela e inventou que a pequena era ciumenta só pra roubá-la de mim.

Isabel, conformada com o homem burro e bonito que tinha arranjado, limitou-se a mandá-lo ficar quieto, para que não atrapalhasse o filme.

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Conto escrito em 02.05.07